Abstract
A linguagem de comunicabilidade da imagética barroca expressa-se com inesperado ênfase no caso de uma desconhecida tela que representa Jesus Cristo perante Caifás e a negação de S. Pedro, num altar do Convento dos frades eremitas paulistas da vila de Portel. Pintada cerca de 1660, essa tela, que se inspira numa estampa nórdica de Schelte a Bolswert segundo modelo caravagesco de Gerard Seghers, leva a colocar a questão do papel assumido pela gravura italoflamenga (a estampa solta e a estampa de livro) na construção de uma imagética contra-reformista ao serviço da militância católica e do convencimento das populações em larga escala. A peça, que é devida, segundo se crê, a um secundário pintor proto-barroco de nome João da Cunha, morador em Beja, reforça a ideia do interesse da nossa pintura regional por cânones de influência caravagesca, uma tendência quase ignorada na arte portuguesa do século XVII. A pintura de Portel mostra uma narração para serviço do convencimento e revela-se um qualificado painel de devoção, inspirado em modelo tenebrista de Seghers, com o seu dinâmico grupo de figuras a la candela que assiste ao trecho bíblico. Testemunha-se um caso de encomenda religiosa periférica que, apesar do seu grau aparente de vulgaridade, assume, através da utilização de uma estampa de sinal erudito, a experiência da inovação possível e as possibilidades da reconversão imagética do modelo, a fim de melhor servir o rigorismo do seu impacto visual.